Gastei parte da tarde dessa quarta-feira procurando (e inventando) empregos ou formas de me sustentar e destruindo meus dois pratos de legumes que comprei por 10% do preço antes que fossem descartados por um hortifruti em Niterói. Um hortifruti com pouca variedade mas, sorte, ainda com uma lesminha ou outra entre as alfaces e couves.
Vivo procurando um guandú, um ora-pro-nobis, ou, quem sabe, um jambolão com sapucaia pra fazer um suco enquanto aperto o cinto e sufoco as tripas da minha já magra conta bancária. Mas só encontro batatas inglesas, alfaces americanas, couves chinesas. Viver por aqui, no mundo mágico da copa do mundo, ficou caro demais e variado de menos.
No total levei uns 6 kilos de mandioca, batata asterix, cebolas, tomates e inhame pra casa por R$7,50. Os sacos de legumes viraram uma descomunal panela de bobó de camarão que, dividindo agora de cabeça os outros ingredientes somados, custaram cerca de R$2,00 o prato bem servido com arroz ao alho e batatas fritas. Fiz isso porque minha rotina de comer no restaurante junto dos operários e pedreiros por dez reais a refeição estava pesando demais minha vida de quase diplomado-desempregado. Antes dessa história de Copa um prato lá custava uns R$5,00. Agora, se quero comer em outro lugar - digamos que uns 300 gramas em um self-service - preciso desembolsar três notas de cinco. Cinquenta reais o quilo de uma lasanha mal feita, um feijão frio, uma salada insossa contra as cinco moedas de vinte e cinco centavos que gastei por um quilo dos legumes que iam pro lixo só por serem mais feios que o resto.
Enquanto ainda garfava o almoço, um amigo se sentou ao meu lado e perguntou porque não estava vendo a escalação da seleção brasileira. Respondi que eu queria mais é que a seleção se fodesse. Queria e quero mesmo. Mas tanto faz, liga aí essa merda, vê quem vai entrar no picadeiro dessa vez, respondi quando me perguntou, ou melhor, quando me anunciou que ligaria a televisão.
Goleiros: Júlio Cesar do Toronto FC; Jefferson do Botafogo; e Victor do Atlético – é, o Victor tá catando muito, resmungam na sala. Laterais: Daniel Alves do Barcelona; Maicon – eu sabia, gritou o amigo que ligou a televisão – do Roma; Marcelo do Real Madrid; e Maxwell do Paris Saint Germain. Zagueiros: David Luiz do Chelsea; Thiago Silva do Paris Saint Germain; Henrique – que burro, que burro, que burro! - do Napoli; e Dante do Bayern de Munique. Volantes: Luiz Gustavo – aí o lateral que o Neto queria! - do Wolfsburg; Paulinho do Tottenham; Ramires do Chelsea; Fernandinho do Manchester City; e Hernanes da Inter de Milão. Meias: Oscar e Willian do Chelsea – de novo os gritinhos de “eu sabia”. E a lista – finalmente, não aguento mais ouvir a voz do Felipão, disseram enquanto me levantava pra lavar a louça – de atacantes convocados: Hulk do Zenit; Jô do Atlético Mineiro; Fred do Fluminense; Bernard do Shaktar Donetsk; e, é claro, Neymar – somos todos macacos - do Barcelona.
Corta pra rua. Meia dúzia de camelôs com artigos chineses em verde e amarelo, office boys, estátuas vivas e passantes variados gritavam para a câmera: é-quiça-campeão! Todos eles pretos, ou quase pretos, ou quase brancos pobres como pretos recebendo zoom's e microfonadas na boca para mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) que a Copa do Mundo é de todos e que essa seleção avaliada em mais de um bilhão de reais os representa. Ai, Neymar, somos mesmo todos macacos. Todos macacos recebendo banana atrás de banana, enquanto os outros macacos – e tu te inclui aí, menino da Vila - limpariam as bundas com a nota de cinquenta que eu preciso, por sobrevivência e teimosia - como o resto dos outros quase brancos mais pobres e mais pretos que eu – fazer transformar em quilos e quilos de alimentos que me permitam aguentar mais um dia nessa cidade de gringo-branco-que-paga-em-dólar que se tornou o Rio de Janeiro e seus arredores.
Voltei pra sala me perguntando quantos quilos de guadú, ora-pro-nobis, mandioca, inhame, couve, lesma, terra, chão daria um Neymar. Segundo informou o presidente do Barcelona, o total desembolsado para ter Neymar no Camp Nou foi o montante de R$284.500.000,00. Duzentos e oitenta e quatro milhões e quinhentos mil reais. É esse o cara que representa o vendedor ambulante de produtos chineses, a estátua viva, o pedreiro com o pulmão carcomido de amianto subindo prédio para construtoras e empreiteiras, os carregadores do hortifruti surrupiando uma tangerina pra clarear e sustentar o dia.
Ofereci o bobó aos amigos que estavam na sala e agora comentavam a escalação enquanto eu pegava uma calculadora. Não acredito que ele chamou o Henrique, disseram. Duzentos e oitenta e quatro vírgula cinco transformados em bobó. Muito burro, outro confirmou. É bobó pra caralho. Mas a seleção tá boa cara! Dois, oito, quatro, cinco, zero, zero, zero, zero, zero dividido por dois. Muito boa mesmo! Um, quatro, dois, dois, cinco, zero, zero, zero, zero! Muito bom esse rango, elogiaram. Cento e quarenta e dois milhões e duzentos e cinquenta mil pratos de bobó de camarão com arroz e batatas fritas! Muito bom mesmo!
Segundo dados publicados pela ONU em 2013, dos 17,883 milhões de brasileiros desnutridos, 13,6 milhões passam fome severa. Políticas públicas como o Fome Zero da gestão Lula conseguiu reduzir em 40% o número total de famintos no Brasil. Mas viver no mundo mágico da Fifa está cada vez mais precário. É cada vez mais difícil morar, se sustentar e comer com dignidade. Nessas horas lembro de Oswald de Andrade e penso na violência dos garfos e facas enferrujados espalhados pelos bolsões de pobreza, circundando as cidades-sede, espreitando de cima dos morros, habitando as frestas do chão rachado e o limiar do horizonte. Nunca antes a antropofagia poderia nos unir tanto. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. E se querem uma Copa de todos e para todos, que nos sirvam pelo menos a coxa do Neymar, já dá pra enganar a fome de um país inteiro. Mas fica o aviso: se não tiver garçom a gente mesmo se serve.
Foda-se a Copa.
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