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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

‘O Hip Hop não ficou no passado’: movimento resiste e é declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Rio

O Hip Hop voltou a ocupar espaço na mídia com o lançamento da série The Get Down pela Netflix, em agosto do ano passado. Com um dos maiores orçamentos, estimado em 120 milhões de dólares, o serviço de streaming cancelou a superprodução no dia 24 de maio, após uma temporada de 11 episódios. Numa outra ponta, no dia 11 desse mesmo mês, foi aprovada a Lei nº 2799/2017 que declara a cultura Hip Hop como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro, de autoria do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Considerado um movimento de luta, no Brasil o Hip Hop ainda sofre com a escassez de políticas públicas eficientes e a relação nem sempre amistosa com a mídia. Na atualidade, resistem as batalhas de rima, as rodas culturais, o breaking e as oficinas de graffiti, para mostrar que a cultura vive – e não ficou no boom dos anos 1990.

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Em uma mescla de ficção e realidade, a série The Get Down, da Netflix, narra o surgimento do Hip Hop e, em alguns momentos, salta até os anos 1990, quando há o estouro do rap no mercado musical norte-americano


Hip Hop ontem e hoje
No final dos anos 1970, em Nova York, nos Estados Unidos, um grupo de DJs, como Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa e Kool Herc, agitava palcos e pistas de danças improvisadas. Numa efervescência cultural entre os latino-americanos, os jamaicanos e os afro-americanos, precisamente no bairro do Bronx, o Hip Hop ganhava forma. Em uma mescla de ficção e realidade, The Get Down  narra o surgimento do movimento e, em alguns momentos, salta até os anos 1990, quando há o estouro do rap no mercado musical norte-americano. A série inicia no momento em que a disco music reina nos clubs, enquanto nas ruas periféricas do Bronx outra festa começa a acontecer. Isso é testemunhado por quatro amigos que gostam do graffiti, fogem das gangues locais e chegam numa festa de rua com Grandmaster Flash, ainda desconhecido, discotecando. A partir daí, a relação entre os quatro elementos principais do Hip Hop, DJ, MC, graffiti e break, começam a ser estabelecidas. 
A relação entre o graffiti e o Hip Hop surgiu quando novas formas de pintura foram sendo realizadas em áreas onde a prática do rap, do DJ e do break eram presentes. O breakdance é a linguagem artística dentro do Hip Hop e baseia-se na performance do dançarino, na sua capacidade de travar e quebrar os movimentos leves e contínuos. Ela é uma estética específica dentro da Dança de Rua (Street Dance) e surgiu durante a crise de 1929, onde os artistas dos cabarés americanos foram para as ruas fazerem seus números de música e dança em busca de dinheiro.

Ainda sem o rótulo de Hip Hop, a cultura chega ao Brasil em meados da década de 1980, através da dança e da música. Durante esse período, a denominação Hip Hop surgiu no país, mas o que era propagado na mídia com esse nome era somente o breakdance. O contexto social no local de seu nascimento era de violência e criminalidade. Para os jovens, a única forma de lazer possível estava nas ruas, onde encontravam no Hip Hop uma forma de manifestar sua realidade.
O movimento se estabeleceu em São Paulo, como uma forma de intervenção político-cultural no espaço vivido da periferia e se expandiu para outros lugares, como o Rio de Janeiro. Mas, ainda hoje, não alcança audiência nas grandes produções audiovisuais e possui incentivos públicos limitados. Desde seu início, as primeiras manifestações do cultura Hip Hop e, consequentemente do rap, que surgira em meio a toda efervescência nos campos político, social e econômico, se manifestavam com mais intensidade nas periferias.
Alex Silva, mais conhecido como Pluto, está imerso no Hip Hop desde 1998, quando começou a praticar break dance em São Gonçalo. Parte histórica do movimento na cidade, foi integrante da primeira geração do grupo São Gonçalo Breakers, ainda em 2001. Quase 20 anos depois, Pluto é bboy, professor de danças urbanas, fundador do projeto Guetos Crew, em que organiza eventos de break, e vice-presidente do Grupo Cultural Consciência, Liberdade, Atitude e Movimento (C.L.A.M.). Ao ministrar oficinas em comunidades e projetos pelo Brasil, o bboy já presenciou muitas situações onde o envolvimento com o Hip Hop trouxe aos jovens coisas que lhe eram negadas.

Mural de Lya Alves - Copa Graffiti (Foto: Ivy Tito/Divulgação)

Para Pluto, o Hip Hop possui um fator de mudança social desde o nascimento e ajuda jovens e adolescentes a passarem por situação de fome e pobreza sem se envolverem com o tráfico. “O Hip Hop traz uma coisa positiva para a vida deles, mesmo que seja ali rápido, no pouco tempo que estamos presente ali. Não podemos dizer para os jovens que eles vão viver de Hip Hop porque é demorado e não é fácil, mas é uma oportunidade. Se ele quiser ser engenheiro, ele pode ser e trabalhar com o Hip Hop. A gente mostra as perspectivas de vida além da arte”, ressalta Pluto.
Como cultura popular, o movimento também se apresenta como uma forma de arte e de atitude que valoriza as identidades, conquista o espaço público e traz para o debate questões sociais e políticas. O Hip Hop se expressa, através da arte que mistura música, discurso, dança e graffiti, e procura levar uma mensagem de denúncia da realidade vivida na periferia.


Alex Pluto (Vídeo: Humberto Gomes)

Dois dos pilares do movimento são a atitude e a conscientização que se mistura a diversão. Uma data que também marca a história do Hip Hop é o dia 12 de novembro de 1973, dia da fundação da ONG Zulu Nation, local de promoção da cultura hip hop e que mantinha jovens longe do crime e da violência. O disco “Hip-Hop Cultura de Rua”  marcou a chegada do movimento no país e impulsionou grandes rappers nacionais, como Thaíde e Dj Hum. Ele concentrava-se nos disc jockeys e criavam trechos com ênfase em repetições que vieram acompanhadas pelo rap, um estilo musical identificado com ritmo e poesia, junto com as danças improvisadas, como a breakdance. No entanto, Pluto afirma que as mudanças na cultura Hip Hop foram grandes ao longo do tempo.
“Hoje você vê batalha de rap na Malhação, mas nunca será falando sobre a parte doente da favela que é a parte mais triste”, analisa. Para ele, o problema não é a cultura Hip Hop estar na mídia de alguma forma, mas a sua representação romantizada e sem crítica social. “Ninguém vai falar sobre o cara que sofre ou o pai que bate na mãe, que é a realidade do cara que canta. O que está na mídia é o ‘rapzinho’ de amor, que é até legal de ouvir mas também tem a hora de você ouvir o rap que mexe e traz informação”, argumenta Pluto.
 
DJ na Roda Cultural Conexão Favela & Arte (Foto: Johnny Pacheco/Divulgação)
Sendo, muitas vezes, visto como sinônimo de Hip Hop, o rap produzido no Brasil apresenta músicas com predominância de temas relacionados às periferias brasileiras. São versos engajados que informam, convencem, motivam e mobilizam seus ouvintes. As experiências dos jovens espalhados nas periferias, ao mesmo tempo que mantém aos temas sociais promove uma identificação com o passado histórico. O professor de danças urbanas, então, realça que o que é divulgado na mídia mascara a realidade e não faz uma multiplicação da cultura Hip Hop.
“Se você começar a levar um rap crítico para a mídia, a população vai começar a pensar. Por exemplo, nunca mais surgiu uma banda que escrevesse críticas, como a Legião Urbana, no rock nacional. No rap, a gente tem, mas a mídia não dá espaço. Quando os Racionais falavam do rap não ir na mídia, tem uma relação que é mais do que estar ou não estar lá, mas é apresentar a cultura do rap como ela realmente é. Eu acredito muito que precisamos aparecer e falar a verdade”, analisa Pluto.

Lya Alves - Mural em Piratininga - Niterói (Foto: Humberto Gomes)


Outra expressão artística marcante no movimento Hip Hop é o graffiti, que nasceu com o objetivo de demarcar becos, muros e trens nas grandes metrópoles. No início, principalmente nos EUA, os mais responsáveis por esses atos eram e latinos, grupos excluídos e que procuravam uma forma de produzir uma cultura local. Com a essência do movimento Hip Hop, essas demarcações se transformaram em obras de arte. Hoje, há uma nítida diferença entre o graffiti e a pichação, o primeiro visto, muitas vezes, como arte e o segundo vandalismo.

Lya Alves conheceu o graffiti aos nove anos ao ler um livro do escritor Umberto Eco sobre o movimento Pop. As cores das casas e os desenhos conquistaram a menina que manteve a paixão viva até os 20 anos, quando visitou Miami e conheceu os grafites da cidade de Niterói que pareciam muito distantes da sua vida. Em 2008, Lya começou a ministrar a oficina Philosofitti  em comunidades com as técnicas que aprendeu e começou a grafitar com frequência após esta época. Atualmente, ela é artista, muralista e, somente em 2015, grafitou mais de 25 locais por onde passou, sendo a maioria em Niterói e Rio de Janeiro, além de algumas obras presentes em São Paulo, Recife e Minas Gerais.

Lya Alves é artista muralista e somente em 2015 grafitou mais de 25 locais (Vídeo: Humberto Gomes)


As oficinas da Philosofitti são realizadas com práticas do graffiti em conjunto com aspectos históricos sobre a origem do movimento, a criação do aerossol, estilos de arte, explosão do Hip Hop e como a arte chegou ao Brasil. As aulas de Lya são ministradas com seu marido André Alves, que também criaram juntos um outro projeto social chamado “Graffiti Evangelista”. A artista também é pastora e está sempre realizando ações sociais através da arte em lixões, comunidades e na cracolândia. Para ela, a cultura é um elemento vital nesses locais, pois sensibiliza e abre janelas e o coração das pessoas, sendo o graffiti um processo libertador e de interação.
“Quando estou grafitando, interajo com a comunidade e expresso a minha arte, crenças e filosofias nos muros. Mas arte não tem que ter função social ou papel social. Acontece que, pela omissão dos políticos, o artista às vezes se envolve com questões ou causas sociais. Se os políticos fizessem a parte deles, certamente teríamos muito mais arte, diversidade, mais quantidade e qualidade. Mas, como eles deixam grandes buracos e não fazem o feijão com arroz, a gente acaba se envolvendo inevitavelmente”, reflete Lya.
Os quatro elementos da cultura do Hip Hop se apropriam dos espaços públicos e reinterpretam a experiência da vida urbana. Os artistas grafitam muros, túneis, paredes e marcam sua identidade. Por meio dele, jovens reconstroem simbolicamente áreas nobres e centrais da cidade. Assim como o breakdance e o rap tomam as ruas com suas letras mobilizadoras e apresentações para a juventude, carregando uma intenção crítica do social para relatar os fatos aos outros a fim de que possam ser questionados. É uma forma de mostrar o país diferente do cartão postal, repleto de conflitos e diferenças sociais. Enquanto cultura de rua, o movimento Hip Hop, mostra a cidade sob os mais diversos aspectos e denuncia as ausências com críticas ao cotidiano.

MC Pericão (Fotos: Humberto Gomes)


A TV ainda é um meio de comunicação muito forte, principalmente nas classes sociais com menos recursos financeiros. Mas a ausência dessa cultura na TV demonstra a existência de um preconceito. Lya afirma que a mídia é uma difusora do grafitti e que “se a mídia aprova, todo mundo aprova pois ela é uma formadora de opinião”. Para ela, o problema não é ir a TV nem colocar um preço em seus valores de artista, mas mostrar algo que não representa a realidade do povo, que é a única forma de conseguir espaço nesse local. “O grafiteiro que vem da favela conhece suas raízes. Quem tem sabedoria não se deixa levar por uma fama circunstancial, mas sabe aproveitar o momento”, defende Lya. Embate entre Hip Hop e Políticas Públicas.
Em conversas com pessoas envolvidas com o Hip Hop, o maior problema relatado está na relação do movimento com as políticas públicas – e a obtenção de recursos públicos para o fomento da cultura. Os questionamentos da artista Lya dialogam com o do professor Alex Pluto, onde ela ressalta que é mais fácil encontrar grandes oportunidades no exterior devido ao sistema burocrático das políticas públicas. “A maioria das secretarias prezam pela burocracia e tem mais prazer em vetar do que realizar algo. Se preocupam mais em reuniões incansáveis para discutir e debater do que com a realização dos projetos. Por outro lado no campo privado, precisamos somente montar uma equipe, encontra um produtor, fazer o projeto, encontrar o local e conseguir o patrocínio para realizar. A arte floresce e é bem mais simples no campo privado”, explica a artista.
A TV ainda é um meio de comunicação muito forte, principalmente nas classes sociais com menos recursos financeiros. Mas a ausência dessa cultura na TV demonstra a existência de um preconceito. Lya afirma que a mídia é uma difusora do grafitti e que “se a mídia aprova, todo mundo aprova pois ela é uma formadora de opinião”. Para ela, o problema não é ir a TV nem colocar um preço em seus valores de artista, mas mostrar algo que não representa a realidade do povo, que é a única forma de conseguir espaço nesse local. “O grafiteiro que vem da favela conhece suas raízes. Quem tem sabedoria não se deixa levar por uma fama circunstancial, mas sabe aproveitar o momento”, defende Lya.

Embate entre Hip Hop e Políticas Públicas
Em conversas com pessoas envolvidas com o Hip Hop, o maior problema relatado está na relação do movimento com as políticas públicas – e a obtenção de recursos públicos para o fomento da cultura. Os questionamentos da artista Lya dialogam com o do professor Alex Pluto, onde ela ressalta que é mais fácil encontrar grandes oportunidades no exterior devido ao sistema burocrático das políticas públicas. “A maioria das secretarias prezam pela burocracia e tem mais prazer em vetar do que realizar algo. Se preocupam mais em reuniões incansáveis para discutir e debater do que com a realização dos projetos. Por outro lado no campo privado, precisamos somente montar uma equipe, encontra um produtor, fazer o projeto, encontrar o local e conseguir o patrocínio para realizar. A arte floresce e é bem mais simples no campo privado”, explica a artista.

Roda Cultural Conexão Favela & Arte - Batalha de Tema no Centro de Niterói (Foto: Johnny Pacheco/Divulgação)
Para o professor Pluto, a iniciativa está ligada a boa vontade, onde algumas pessoas só investem pela necessidade da responsabilidade social por parte de empresas. “Iniciativas com boa vontade são pouquíssimas. Elas só partem dos movimentos, que precisam procurar uma empresa ou a prefeitura para tentar aplicar um projeto. Nós queremos oferecer oficinas gratuitas para todos, mas precisamos viver e sustentar nossa família. Sem investimento é impossível”, ressalta. 
O MC é mais um dos elementos presentes na cultura do Hip Hop e pode ser considerado a parte consciente do movimento. Dentro do movimento, o rap é a junção do MC, que canta com sua própria voz, e do DJ, que adiciona o ritmo à música. A arte do DJ e a do MC surgiram como dois elementos separados, que se complementam. Um dos atuantes neste movimento é o MC Pericão, integrante do Conexão Favela & Arte, um projeto que visa incluir Arte, Cultura, Música e Educação nas Favelas e Comunidades de Niterói e Região. Com foco também na a criação de Centros Culturais com oficinas, o projeto contribui para a redução da discriminação em relação aos moradores de comunidades descobrindo artistas talentosos com futuros promissores.

Roda Cultural Conexão Favela & Arte - Batalha de Tema no Centro de Niterói (Foto: Johnny Pacheco/Divulgação)


Para MC Pericão, é necessário um projeto de lei para garantir que a cultura de rua continue como algo transformador. O MC participa de um núcleo formado por diversas rodas de rimas no Rio de Janeiro, como o Circuito Carioca de Ritmos e Poesia (CCRP), que tenta manter um diálogo com o governo através do presidente do movimento. “Através desse diálogo eles foram legitimados como patrimônio cultural, mas em um vídeo é possível ver o Dom Negrone indo pra frente da delegacia porque os policiais pararam a roda de rima. Eu só quero que o patrimônio seja realmente respeitado, pois somente assinar um papel é fácil”, critica MC Pericão.


MC Pericão faz parte do projeto Conexão Favela & Arte, em Niterói (Vídeo: Humberto Gomes)

Os Dj's iniciam tocando nas festas nas ruas e modificando as vias públicas enquanto o Hip Hop deu voz às tensões do espaço público urbano. Essa cultura de rua engloba não só a música e a dança, mas também ações comunitárias e encontro de jovens para discutir questões sociais e políticas. Baseado em suas ações encontra-se a necessidade de assegurar os direitos dos artistas, incentivar as discussões nas instituições e incluí-los no orçamento governamental.
A região metropolitana do Rio é conhecida pelas rodas culturais e por seu Observatório do Hip Hop. Romário Régis, da Coordenação de Projetos da Secretaria de Cultura do município de São Gonçalo, começou a se envolver o Hip Hop nos últimos seis anos. Segundo ele, uma das maiores dificuldades é mostrar para a sociedade que o investimento em cultura é tão necessário quanto saúde e educação e não precisa estar, necessariamente, em segundo plano numa hierarquia, pois tais atitudes acabam inviabilizando projetos. Romário ainda afirma que a questão da reforma urbana, por exemplo, é mais desejada do que projetos culturais pelos habitantes da cidade.
“O artista acaba tendo uma dependência muito grande do poder público, ao mesmo tempo que o poder público não consegue dar conta dos anseios do artista e ele acaba comparando porque algumas iniciativas acontecem em outras cidades e não em São Gonçalo. A dificuldade é ter gente pra trabalhar, dinheiro e uma priorização de um governo, seja ele qual for, pra entender que cultura é importante”, analisa. 
O projeto de lei estadual recém aprovado afirma, em seu segundo artigo, que é dever do poder público assegurar e fomentar a cultura Hip Hop, assim como qualquer realização de suas manifestações, impedindo atitudes e imposição de regras  discriminatórias. No entanto, Romário ressalta que reconhecer não quer dizer as políticas públicas serão efetivas e que tal manifestação estará no orçamento ou será prioridade em editais. “Um exemplo disso é que a lei foi aprovada há pouco tempo e na semana passada as rodas de Hip Hop no Rio de Janeiro foram inviabilizadas, quase proibidas”, argumenta. O membro da Coordenação de Projetos ressalta que, apesar de tudo, este é o caminho e que o movimento precisa lutar por orçamentos e pela hierarquia da gestão pública. “Tem superintendência de artes plásticas e artes cênicas, mas tem que ter superintendência de cultura urbana. Acho que esse tipo de hierarquia é a próxima caminhada necessária”, aponta Romário.

Grupo de break de São Gonçalo (Fábio Gonçalves/O Dia/Reprodução)

O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) conta que a necessidade da Lei nº 2799/2017, que tornou o Hip Hop Patrimônio Cultural Imaterial no estado do Rio, deu-se ao perceber os impedimentos das diversas rodas culturais no Rio, além da repressão e burocracia que a cultura de rua enfrentava por preconceitos e diferença de gostos. Freixo afirma que, sendo assim, “a lei garantirá a realização das rodas culturais e o direito de livre reunião de rappers, MC's, grafiteiros e Bboys e Bgirls sem que elas estejam sob o arbítrio dos agentes de segurança”.
Além disso, o deputado realça que o reconhecimento do Hip Hop como cultura é importante para inverter o papel do Estado. “Em vez da burocracia e da repressão atual, queremos que o Hip Hop seja alvo de políticas culturais de fomento, com a criação de editais, e educacionais, sendo levado para as escolas como parte do projeto pedagógico”, afirma Freixo.
A criação do projeto de lei aconteceu pela demanda de um grupo de trabalho formado por grafiteiros, agitadores culturais, rappers e Mc's membros de Liga de Rodas da Zona Oeste do Rio de Janeiro, grafiteiros que organizam o “Meeting of Favela” e o Instituto Enraizados, da Baixada Fluminense. Em uma construção coletiva, o projeto, batizado como “Lei Hip Hop é rua”, foi apresentado para outros movimentos e, lançada a proposta da lei, recebeu apoio de figuras importantes como Rappin Hood , Lívia Cruz e Bnegão, além do apoio das rodas culturais de todo o estado.
Freixo realça que a lei garantirá que os movimentos ocorram onde nasceram, nas ruas e rodas culturais. “A lei explicita o caráter gratuito das atividades, o que ganha importância frente a possibilidade de que essa cultura acabe ficando limitada aos palcos de mega-eventos e casas de shows cujos ingressos custam mais caros do que a maioria da juventude pode pagar”, analisa o deputado.

 
Charlie Felix, mais conhecido como Kaléo, um dos bboys mais antigos de São Gonçalo (Vídeo: Humberto Gomes)

Rôssi Alves, professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidade e do curso de Produção Cultural da UFF, é autora do livro “Rio de Rimas”  e pesquisa a arte urbana em sua interface com políticas públicas. Para ela, a cultura do Hip Hop é feita com base no interesse de quem compõe o movimento e a repressão nos espaços públicos se intensifica por não haver dinheiro para migração de local. Além disso, a articulação com outros órgãos para realização do evento, como corpo de bombeiros e polícia militar, também torna o processo mais complexo. “É todo um percurso muito espinhoso. Tem uma dificuldade enorme para desburocratizar esse processo e ter apoio financeiro, então outro tipo de apoio, que seria o mínimo, é liberar o espaço”, analisa Rôssi.
Segundo ela, alguns editais, como o Edital Hip Hop, da Funarte, e o Edital Ações Locais, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio, contemplam a cultura de rua de algumas formas, mas que as ações ainda são muito sazonais. “Não é uma política pública, não se torna um programa de governo. Por exemplo, o prefeito do Rio Marcelo Crivella entrou e o pessoal dos editais do ano passado ainda não recebeu. A Funarte custou a pagar e depois parcelou. São muitas dificuldades para se conseguir algo pra esse movimento”, ressalta a professora.
Marcelo Freixo afirma que, a partir da lei, será possível reconhecer a responsabilidade da Secretaria Estadual de Cultura  em criar políticas de incentivo financeiro ao Hip Hop, indicando a criação de edital específico para o tema e de dotação orçamentária própria. Além disso, o deputado realça que também indica a “responsabilidade do poder público em promover capacitações e integração dos gestores culturais do Hip Hop para que eles participem de editais e mecanismos de fomento mais amplos, cujos processos seletivos são de difícil compreensão para a maioria da população”.
Um dos principais objetivos da declaração como patrimônio cultural é impedir o sofrimento dos membros da cultura do Hip Hop em seus locais de vivência, visto que essas expressões da cultura negra são criminalizadas diante do racismo estrutural da sociedade. Sendo assim, o reconhecimento oficial, segundo o deputado, não só garante os direitos imediatamente, mas acaba com a perseguição e desigualdade por partes de agentes e políticas públicas, abrindo diálogo com os setores da população.
Ébano e MC Pericão (Foto: Johnny Pacheco/Divulgação)

E essa amplitude do movimento Hip Hop, que se articula não só como um movimento que difunde a cultura do grafite, dança e MC, mas também atua socialmente, alcança as vidas das pessoas em volta. Para Rôssi, essa cultura se assemelha ideologicamente com a esquerda, indo além de um movimento cultural e também sofrendo marginalizações e preconceitos, diferentes do funk, por exemplo, pois carrega consigo um ativismo político e social. Apesar de pouca penetração com suas questões sociais na mídia hegemônica, o Hip Hop conseguiu uma penetração maior do que as batalhas de rimas ou um rapper mais alternativo.
No entanto, a professora acredita que, pela grandeza de espaços em que essas expressões culturais estão se dando, os debates estão sendo promovidos mesmo com o impedimento do espaço público. “Não é uma cultura mais restrita a algumas pessoas que curtem hip hop pois este tem uma amplitude que atende a diversos gostos. Nesse sentido, ele não atende só aquele publico naquela comunidade, mas alcança outros segmentos que antes estavam distantes”, defende Rôssi.
Atuante na área de cultura e comunicação, a professora acredita que algumas grandes vozes divulgadas pela mídia hegemônica trazem uma certa atenção para esse gênero, como o Emicida. “Pode-se perceber com isso que a periferia não só consome cultura mas também produz e a partir disso o poder público pode olhar para esses movimentos e, mesmo que políticas públicas não sejam feitas diretamente, há outras formas de apoio e patrocínio que são difíceis, mas ajudam”, afirma a professora, que ainda conclui que alguns discursos midiáticos podem tratar superficialmente a questão, mas atrai a atenção e desperta o interesse do público: “Não dá para fechar os olhos diante deste poder. O que periferia tem de cultura não dá pra negar. As pessoas gostam e as que não gostam podem seguir para outro gênero, como o funk. Mas o rap, a literatura, a dança e os outros elementos tem um grande potencial”.
Apesar da falta de investimentos públicos, as manifestações do Hip Hop ganham cada vez mais adeptos nos eventos independentes de diversos coletivos. Tatiana Verônica Bezerra Galvão é editora de uma revista online voltada para área de saúde e participa de grupos e eventos relacionados ao Hip Hop. A jornalista publicou o artigo “Hip hop e mídia: negociando interesses e ampliando conceitos”, e está constantemente em saraus, shows e palestras sobre o tema.
O interesse de Tatiana pelo movimento deu-se quando ela entendeu a natureza comunicativa da cultura e como a mesma deixou de se resumir a categorias estéticas e passou a ser um canal de expressão política e social. A partir disso, trabalhar com o Hip Hop a possibilitou “conhecer um universo rico não só em produções artísticas, mas principalmente políticas, com discursos próprios e sem intermediários de outras classes sociais”.
A jornalista afirma que a saída do Hip Hop da periferia para alguns espaços na mídia foi uma relação ambígua, “oscilando entre a estigmatização e a glamourização”. Para ela, o receio está no modo em como seriam representados e a apreensão da diluição das propostas de contestação pela qual eram conhecidos. Sendo assim, mesmo que não estivessem nos espaços midiáticos hegemônicos, o Hip Hop investiu em uma comunicação alternativa para nunca deixar de trabalhar e produzir para o seu público principal: a periferia.

Lya Alves - Mural em Piratininga - Niterói (Foto: Humberto Gomes)

Tatiana ressalta ainda que o discurso é sempre atual e continua dando frutos com ótimos MC’s, além da reformulação com o surgimento de mulheres. “O que tem chamado minha atenção é o surgimento cada vez maior de mulheres na cena. Infelizmente uma das características marcantes do Hip Hop sempre foi o machismo. Por meio de suas músicas, elas têm trazido à tona essa realidade e falado da opressão e violência a que muitas mulheres são submetidas”, observa a jornalista.



Editoria Cultura
Bárbara Queiroz
Humberto Gomes
Lizandra Machado
Marianna Ferreira
Marry Lima Ferreira

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